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Percursos de autor - Carlão

Carlão ©Luís Filipe Catarino

“Toda a gente gosta de si!”, diz-lhe uma das muitas senhoras, já com alguma idade, por quem passamos ao longo do nosso percurso por Cacilhas. “Olá, Carlitos!”, fazem questão de cumprimentar, perguntando pela família. “Em casa, está tudo bom?”. E o Carlitos de outrora (uma forma de tratamento que se mantém para os mais chegados), que as senhoras conhecem desde pequeno, é Carlos Nobre, ou Carlão, que faz questão de responder, sempre com um sorriso no rosto, a todos os bons dias que recebe, nunca recusando fotografias aos fãs mais jovens.

Texto de Joana Mendes
Fotografia de Luís Filipe Catarino

Marcámos encontro no estúdio pessoal de Carlão, em Cacilhas, a sua “segunda casa”, local de trabalho que encontrou numa feliz coincidência. “Eu estava em Lisboa, há uns tempos, a dividir o estúdio com o Sam The Kid, com o Regula, com o Fred Ferreira. Mas era muita gente no mesmo sítio e tentei encontrar um local para mim. Já estava quase a alugar em Lisboa, mas, numa das minhas vindas a Cacilhas, reparei que este sítio estava para a alugar e então foi perfeito.” A morar e a trabalhar em Lisboa, “estava a perder o contacto com os meus pais [que continuam a morar em Cacilhas] e com o pessoal da minha criação. E acho que isso se traduziu na música que comecei a fazer depois de estar aqui”.

Carlão dá como exemplo o tema Viver Pra Sempre, de 2017. Uma canção que nos fala da vontade de “sentires a tua gente” e cujo vídeo não nos deixa indiferentes. Filmado em Cacilhas, no campo de jogos junto à Rua Mário de Sá Carneiro, um local indissociável da infância do músico, quando ainda era hábito as mães virem à janela dizer “anda para casa jantar! [risos]. Um gajo ficava aí o dia todo na rua e foi nesta área que passámos muito tempo da nossa juventude”.

O vídeo, do realizador Fernando Mamede, surgiu da ideia de “fazer uma festinha, com umas colunas, e estar aí com amigos e família. Acaba por ser para mim um dos vídeos mais emblemáticos”, porque juntou “pessoas com quem eu cresci, pessoas da minha família, amigos, outra malta que é da zona e apareceu. Ficou um retrato muito porreiro daquilo que é a vida aqui”. Um retrato que fala de um “capital humano”, como lhe chama Carlão, de “um lidar mais próximo” que caracteriza as gentes deste território.

Saímos do estúdio e paramos neste campo de jogos, cujo projeto recente de intervenção juntou artistas, todos conhecidos de Carlão – o artista visual Chicolaev, o grupo M.A.C. e o coletivo Crack Kids –, que, curiosamente, desenvolveram o conceito “De Volta à Base”. Além da pintura que hoje vemos no chão, o projeto vai contar com uma música dos M.A.C., onde Carlão irá ter uma participação.
 
Carlão já atuou várias vezes em Almada. No Sol da Caparica, no Teatro Municipal Joaquim Benite e até à entrada do terminal fluvial de Cacilhas onde, em 2018, surpreendeu quem por ali passava com um concerto solidário. Falta-lhe a sala da Incrível Almadense. “Ainda hei de fazer um concerto, em nome próprio, na Incrível. É uma sala que eu adoro e só lá vi concertos”.

E será diferente tocar em Almada? Carlão responde rápido e fácil. “Por um lado, sabes que estás a tocar em casa, mas, por outro, há alguma responsabilidade porque estás a tocar com pessoal que te viu crescer, que andou contigo na escola e queres dar o teu melhor. Há ali uma mistura de emoções. Com o passar dos anos, tenho vindo a concentrar-me mais nas coisas positivas e, realmente, cada vez que toco aqui na zona é muito diferente. O facto de haver alguém que me dá esse sentimento de casa e de pertença mete-me logo um sorriso nos lábios e estou muito mais à vontade”, responde.

A escrita está muito presente no trabalho de Carlão. Foi o autor das letras dos Weasel e continua a escrever os seus próprios temas, revelando uma preferência pela realidade que o rodeia. Carlão lembra o conselho antigo do irmão, também músico, João Nobre. “Podes escrever sobre tudo o que quiseres, desde que o faças bem. (…). Podes fazer um texto excelente sobre uma pedra da calçada, é a tua perspetiva que interessa. Esse conselho do meu irmão fez-me pensar que podia escrever sobre tudo, desde que o fizesse de uma maneira interessante.” Como num dos hinos dos Da Weasel, Tás na Boa, onde o primeiro verso nos fala da vivência nos cafés da zona, um dos quais ainda lá está, no sítio de sempre.

Também o terminal fluvial de Cacilhas marca a juventude de Carlão. “Era o portal para outra realidade, que era Lisboa à noite. Eram incríveis essas viagens de barco, com a malta toda que se encontrava para ir para o outro lado onde se viviam histórias rocambolescas”.

Carlão lembra ainda a época de escola. “Fui um excelente aluno até ao 8.º ano, depois comecei a patinar [risos]”. Como andava com malta mais velha, saía da D. António da Costa, onde estava de manhã, descia e vinha ter aqui [Escola Secundária Cacilhas-Tejo] com meu irmão e com essa malta. Saltava as redes para ir ter com eles.”

Nesta altura também o Ponto de Encontro, em Cacilhas, fazia jus ao nome. “Era, realmente, o ponto de encontro de bandas e de malta que gostava de música. Dei ali os meus primeiros concertos, com bandas que tinha, para aí com 13 anos. Para nós era muito importante, na altura, porque tínhamos pouquíssimas coisas e o Ponto de Encontro era uma delas.”

Impossível não falar da figura do Cristo Rei e das palavras Almada Cru (um jogo de palavras) que Carlão tem tatuados. “Quando fiz as tatuagens estava cá, mas elas ganharam outro significado quando fui para Lisboa. Porque aí, cada vez que as vejo, não me deixam esquecer de onde é que venho. Esteja onde estiver, está aqui esta referência”.

“Bebe-se um café, escreve-se um refrão” é um dos mais recentes projetos que junta uma dupla de artistas que partilham processos de criação. Filmado em 2021, parte num café (na Rua António Nobre), parte no seu estúdio, “Bebe-se um café, escreve-se um refrão” deixou Carlão com vontade de continuar o projeto. “Gostava de vir a fazer uma segunda temporada. Gostei muito da experiência e faria aquilo com outro à vontade”.

E neste que é um mês caracterizado pelos regressos, vamos poder contar com novo EP, Formas do Verbo Amar, que inclui o tema já em rotação A Maior Traição e que nos fala do conceito de “relação”, de “ideal amoroso” que pode ter expressões muito diferentes entre si.

Já no fim desta pequena viagem, que nos levou pelas memórias de Carlão e que terminou onde começou, no seu estúdio, lembramo-nos de uma frase do músico que, de forma breve, nos fala da relação com Almada. “Gosto de fazer coisas deste lado porque tem mais a ver comigo, sinto-me muito mais à vontade do que em qualquer outro sítio”.