Percursos de autor - Inês de Medeiros
Tentando mostrar o que Almada teima em esconder, a autarca defende para o concelho um papel de liderança no projeto Arco Ribeirinho Sul, critica algumas entidades do Estado que retiram autonomia aos municípios na gestão do território e fala de um futuro que só pode ser construído com as pessoas.
Texto de Paulo Tavares
Fotografia de Luís Filipe Catarino
“Qualquer pessoa que ache que Almada é um dormitório está absolutamente enganada.” À frente dos destinos da autarquia desde outubro de 2017, a defesa do território surge natural, a cada esquina da conversa e é assumida sem hesitações. “Almada tem imensa vida própria e uma identidade muito forte, muito marcada. É algo que os Almadenses preservam muito.”
A autarca confessa que ainda se deixa surpreender pelos Almadenses e por uma vida que se faz, acima de tudo, das pessoas e das relações entre elas. “A minha Almada são as pessoas. O que é que as pessoas mais valorizam? A vida em Almada. E a vida em Almada não se faz apenas em pontos turísticos. A vida aqui faz-se nas ruas, nos cafés, nos restaurantes.”
Conversávamos em plena igreja da Nossa Senhora da Assunção, um projeto de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, exemplo de arquitetura modernista, inaugurado em 1969 e que foi uma das primeiras igrejas em Portugal a incorporar as mudanças saídas do Concílio Vaticano II no seu desenho.
“Almada tem muitas destas jóias escondidas”, ia dizendo Inês de Medeiros, apontando aqui e ali os traços de uma igreja marcante. “É muito impressionante. Há uma outra que é a grande referência das igrejas do Nuno Teotónio Pereira em Lisboa, que é o Sagrado Coração de Jesus, quando na realidade esta tem uma imponência que não é sequer comparável.
E muita dessa escala vem de uma luz natural que surgiu depois de um pedido da Presidente, para que se apagassem as luzes. Entre a frieza do betão e o calor da madeira e da cortiça, regressa a comparação. “É muito mais disruptiva, com um jogo de luzes único e uma noção de espaço comum que não existe na outra.”
A CMA tem planos para começar a tornar mais visíveis estas marcas arquitectónicas. “As obras estão cá e já estamos a trabalhar com a trienal de arquitectura, para dar a conhecer esta outra faceta de Almada, que está muito presa a dois símbolos, o Cristo-Rei e o pórtico da Lisnave, mas há mais.”
Um “mais” quase envergonhado. “Tenho sempre esta noção de que Almada é a cidade tímida, quase pudica, ao contrário de Lisboa. Lisboa expõe-se e Almada esconde-se. É uma cidade recolhida, muito mais recatada.” Daí que seja “importante chamar as pessoas". Dizer: ‘transponham a arriba e venham conhecer o que aqui está’”.
Com Almada a comemorar 50 anos de elevação a cidade, Inês de Medeiros recorda a surpresa dos primeiros tempos como candidata autarca, ainda deputada e bem antes das eleições de 2017. “Surpreendeu-me esta vida escondida, que conhecia como qualquer pessoa que vem a Almada ao Festival Internacional de Teatro ou à Costa da Caparica… era essa a minha ligação. ”
A caminho de umas piscinas municipais abandonadas, perto da Casa da Cerca, atravessa-se uma teia urbana intrincada, quase caótica. “Não é segredo para ninguém que Almada desenvolveu-se de forma um bocado inorgânica e nalguns sítios até um bocado caótica. As pessoas foram tecendo relações e criando uma harmonia sobre esse caos. Isso é o lado mais fascinante”.
A questão hoje, com o passo da requalificação a acelerar, é preservar identidades. É esse, considera a Presidente, “o maior desafio enquanto autarcas, é tentar arranjar forma de conciliar o desenvolvimento e a requalificação com a preservação da vida local e da própria identidade. É necessário assegurar um sentido de comunidade e uma identidade fortes. É este ‘viver juntos’, que é diverso num território. Não se tem a mesma identidade aqui no centro de Almada do que se tem na Cova da Piedade ou no Laranjeiro. São diferentes, mas válidos. E são esses tecidos humanos que unem uma comunidade”.
Já passeávamos pelo interior das tais piscinas municipais encerradas há muito, ali a meio caminho entre a Casa da Cerca e a escola Conde de Ferreira, quando Inês regressa à ideia de uma cidade tímida. “Almada é um pouco como aquelas adolescentes que têm imensa roupa, muito larga, três números acima e cuja beleza só se revela quando começam a comprar roupa uns números abaixo.”
Inês de Medeiros diz ter planos para aquelas piscinas, num sítio com uma vista única sobre o Tejo. Recuperar o espaço, criando “um centro que será sempre de arte moderna e contemporânea ou de fotografia”. Esta será uma nova peça numa espécie de eixo cultural ao longo da cota mais alta da cidade.
Olhando para baixo vê-se o Ginjal. “Uma dor de alma”, confessa Inês, que lamenta todos os obstáculos à recuperação de uma zona essencial na relação de Almada com o rio. E há uma desilusão recente. “Um recurso do Estado em relação ao domínio público marítimo, através da Agência Portuguesa do Ambiente, que nos parece absurdo e sem sentido. Sobretudo porque promove o abandono, não traz nada de positivo, nada. É uma reclamação de domínio público, mas não é para preservar, não é para cuidar, é para manter o abandono.”
Recusando falar de frustração, que diz ser um sentimento paralisante, a autarca lança um desafio ao Estado central. “Se é domínio público, então o Estado, através da APA, tem de assumir as suas responsabilidades. Há uma arriba para cuidar, há ali todos aqueles edifícios que estão ao abandono. Temos de ser consequentes com o que exigimos.”
Com os terrenos da Lisnave ali ao lado, Inês de Medeiros afirma que “Almada é a prova de que os municípios são as melhores entidades para gerir o território. Quando há outras entidades públicas a gerir, vê-se o resultado. O ICNF ou a APA são fundamentais para o acompanhamento dos municípios, mas são péssimos gestores do território, péssimos! E também não podem ser os grandes inquisidores de uma moral de preservação, quando eles próprios são muitas vezes um factor de abandono. Criam o abandono”.
Ginjal e Margueira - os terrenos da antiga Lisnave -, são “dois casos que não dependem da câmara. Temos feito tudo o que podemos para acelerar processos”, garante Inês de Medeiros. “Em relação à Margueira, o governo anunciou agora o Arco Ribeirinho Sul, uma nova forma de gestão. A Câmara tem estado a trabalhar na revisão do plano de pormenor, que é fundamental, porque o que existia tem quase 20 anos.”
Admitindo que os Almadenses têm uma tolerância muito baixa a anúncios que não se concretizam, a autarca assume toda a ambição deste novo projeto. “Ninguém vai levar a mal que eu defenda, e defendo, que a Margueira é o motor do desenvolvimento do Arco Ribeirinho. Todo este projeto tem de começar por Almada. É o que os investidores querem e, enquanto isto não avançar, tenho dúvidas de que o resto avance.”
Será sempre uma zona onde a CMA não tem autonomia absoluta, logo mais vale apostar em ir adiantando trabalho nas áreas envolventes. “Temos a Romeira ali ao lado e estamos muito apostados na sua recuperação. Temos dois grandes projetos - a criação da Loja do Cidadão, para levar serviços para aquela zona e uma residência para estudantes”
Reabilitar a Romeira e criar na Mutela - um pedaço de frente ribeirinha, com uma pequena praia entalado entre a Base do Alfeite e os terrenos da Lisnave - um novo polo de desportos náuticos, transferindo para ali a sede do Clube Náutico, talvez seja “uma forma de demonstrar toda a potencialidade da Lisnave. Só que a Lisnave não é da Câmara (risos)”. A ideia, diz Inês de Medeiros, é “requalificar para devolver aquele espaço às pessoas e trazer vida, serviços e emprego para ali. Não gosto de garantir coisas de que não tenho a certeza, mas posso garantir que continuarei a lutar por isso”.
E Almada será, também por toda esta corrida de obstáculos, o concelho e a cidade do potencial por explorar? A autarca não tem dúvidas. “Isso é, absolutamente! Aliás, acho que qualquer autarca inveja ter uma cidade no coração da Área Metropolitana de Lisboa com tanta potencialidade.”
Deixamos a cidade e seguimos até à Trafaria por estradas secundárias e azinhagas. Num instante, deixamos a cidade densa e criada em altura para respirar prados e olhar rebanhos. “É fundamental”, afirma Inês de Medeiros, “preservar este caminho que nos trouxe até aqui. Por isso temos tanta Reserva Ecológica Nacional que deve ser preservada. Saímos de um meio profundamente urbano e, ao virar de uma esquina, estamos em plena ruralidade, com campos imensos e vistas até ao horizonte. Foi algo em que pensámos muito quando estávamos à procura da ‘assinatura’ Território de Muitos. Há muitas Almadas dentro de Almada. A sua força está justamente nessa diversidade”.
Chegámos à Trafaria já com o tempo contado para uma breve conversa sobre inovação. É ali, no antigo presídio, que vai nascer o Instituto de Arte e Tecnologia, uma parceria entre a CMA e a Universidade Nova. Os edifícios fora do presídio, entretanto já recuperados, estão a cargo do município. O problema aqui, diz Inês de Medeiros, é o “excesso de procura, o que às vezes até dificulta a seleção” dos projetos.
É um exemplo de um dos desafios destes dias, diz a autarca. “Já lá vai o tempo em que se arrasavam vilas e aldeias e se construía tudo de novo com betão. Esta ideia da requalificação, da reciclagem, da economia circular, da integração, isto é que é uma ideia verdadeiramente moderna”.
Já com outro ponto na agenda a pressionar, a Presidente da Câmara deixou uma ideia que, no essencial, tem uma ligação a todo o percurso que fizemos pela cidade e pelo concelho: “O futuro constrói-se com as pessoas, com as comunidades, nunca se consegue construir futuro contra as comunidades”.