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Percursos de autor - Nuno Saraiva

Nuno Saraiva

Em frente ao terminal fluvial de Cacilhas, já a meio da manhã, há quem ainda se apresse para apanhar o cacilheiro. Em sentido contrário vem Nuno Saraiva, autor de BD, ilustrador e cartunista almadense, que vem de Lisboa para nos guiar pela Almada que cresceu pelas mãos dos avós e bisavós e que o viu crescer a ele.

Texto de Joana Mendes
Fotografias de Luís Filipe Catarino

Comecemos pelo fim da viagem, na praceta Jornal de Almada – na altura, um bairro operário habitado por "pessoal com vidas muito difíceis" – nos anos em que a rebeldia, a vontade de "querer saltar a cerca, as primeiras namoradas, as cegadas, as situações complicadas com a polícia, os pequenos furtos, que os fiz [risos]", marcavam a adolescência de Nuno, no início dos anos 80.

As pancadarias de bairro, motivadas pelas rivalidades de rua, também aconteciam. Num jogo de "dá e leva", eram encontros que deixavam marcas, não só no corpo, mas também na memória. Uma dessas lutas acabou por descambar numa cena mais feia, já não de rapazes rebeldes, mas de adultos, com os patriarcas do bairro a meterem-se ao barulho.

Marcou-o o encontro com o escritor e pugilista (na altura, já retirado) Romeu Correia, na casa do próprio, onde tinha ido "acartar baldes" para fazer algum dinheiro. Vendo-lhe as marcas da luta na cara, deu- -lhe uma "aula" de como se defender ou como aplicar "um bom gancho".

"O homem que me estava ali a pôr luvas nas mãos e a ensinar a dar murros era o autêntico Romeu Correia", o mesmo que dava o nome à rua onde fora fazer o trabalho. "Mais do que ensinar golpes, ensinou-me que a brutalidade pode estar casada com a poesia. Achei deslumbrante como é que um homem mesmo forte fisicamente era, ao mesmo tempo, um ser sensível, um intelectual, um resistente. Isso marcou- -me para sempre."

Estudou na Emídio Navarro, na altura uma escola profissional especializada em metalurgia. Dava-lhe jeito a proximidade de casa, na Rua Luís de Queiroz, a última residência em Almada, antes de partir para Lisboa. Aqui, recorda o perfume da cerveja que o pai, Fernando Saraiva, lhe permitia cheirar quando visitavam o café Tico-Tico, nesta que era uma das ruas com o comércio mais vibrante de Almada.

Continuamos a viagem às arrecuas, já para a infância de Nuno Saraiva. Entramos na Praça do M.F.A., antiga Praça da Renovação. "Os estudantes, os intelectuais, as famílias, os velhinhos, toda a gente confluía" nesta Praça no final dos anos 1970, onde se encontravam duas pastelarias que marcavam o espaço com as suas longas esplanadas. O Dragão Vermelho – uma pastelaria muito bem decorada onde o levava a mãe, Maria José Avelar –, e o Café Central, "o coração desta zona de Almada", onde aprendeu a gostar de snooker e bilhar com o pai.

É também nesta Praça que encontramos a tabacaria mais importante na vida de Nuno Saraiva que, apesar de diferente, ainda hoje lá está. "É graças a esta tabacaria que sou autor de banda desenhada. Desde criança que vinha aqui comprar a revista Tintin, a Spirou… Ainda hoje sonho com este sítio, onde vou comprar revistas que me faltam e bandas desenhadas que nunca li, que nunca foram feitas”. Foi o pai, ávido leitor de banda desenhada, quem lhe despertou o gosto pela BD, comprando revistas.

Passamos pela Avenida D. João I, onde Nuno Saraiva nos fala da Igreja de Nossa Senhora da Assunção, desenhada pelos então jovens arquitetos Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas. Uma igreja de traço modernista, uma das primeiras do mundo e que foi "uma pedra no charco em Portugal". Em betão armado e cheia de arestas, esta igreja, inaugurada em 1969, foi um "ato revolucionário que marcou a identidade da cidade". Fazem parte da infância de Nuno, os jardins à volta da Igreja. Aqui, encontramos o painel de azulejos de Manuel Cargaleiro, na altura um jovem artista que não era tolerado pelo regime de Salazar, mas que foi escolhido pelos arquitetos para decorar o jardim.

Continuamos caminho pela Rua Mendo Gomes de Seabra, onde Nuno Saraiva viveu em criança e percorremos a Rua Capitão Leitão, a "espinha dorsal" da infância do ilustrador. É aqui que Nuno nos fala mais da sua família. É filho de "duas famílias fortes de Almada, que se calhar só os muito antigos é que lembram". O facto das duas serem politicamente antagónicas "fazia-me pensar que era filho do Romeu e da Julieta. O meu avô paterno, Manuel Fernandes Saraiva, era despachante oficial, um homem do regime de Salazar. O meu bisavô materno, José Francisco de Avelar, estava ligado à construção civil e foi um dos principais responsáveis pela edificação da Capitão Leitão, pelos edifícios baixos, de dois andares. Era do Partido Comunista, na altura em que era corajoso ser-se deste partido. Ainda durante a primeira República, chegou a ser vereador da Câmara Municipal de Almada". Esta dualidade revelou-se importante para o ilustrador, "o facto de vir dos dois lados, faz-me ficar a meio e pensar nas margens."

No Largo José Alaíz, o "epicentro da história da família Avelar" o ilustrador recorda as "memórias tenebrosas que tinha do fascismo" na infância da mãe. "Chegaram a rebentar as portas de casa com rajadas de metralhadora para tentarem capturar os tios, do PC, que viviam na clandestinidade". Histórias que contavam na família e que foram fascinando Nuno, nascendo o gosto pela história política contemporânea, muito visível no seu trabalho enquanto cartunista político. "Há uma necessidade de olharmos para trás e irmos à memória do nosso passado mais recente. Isso é um cavalo de batalha do meu trabalho, alertar para a falta de valores que começa a sentir-se".

Mas, nem todas as histórias eram tristes. Neste Largo, o tio-avô, José Avelar, que tinha um projetor de cinema com bobinas, "fazia sessões de cinema na rua para as crianças. Uma cena mesmo muito Cinema Paraíso".

"Ainda hoje sonho com este sítio, onde vou comprar revistas que me faltam e bandas desenhadas que nunca li"

Quiçá tenha sido do tio-avô, uma figura familiar que não chegou a conhecer, que Nuno herdou a paixão pelo cinema. Uma paixão que deve "aos almadenses das gerações anteriores quando criaram clubes desportivos, associações, sociedades filarmónicas que trouxeram o cinema à cidade de Almada", num tempo em que "a palavra ‘almadense’ confundia-se com a palavra sócio. Todos os almadenses eram sócios de alguma coisa". Os dois lados da família de Nuno estiveram muito ligados ao associativismo, participando na fundação das várias coletividades da zona, entre as quais as centenárias Academia Almadense e Incrível Almadense.

Nuno era, ele próprio, sócio das várias associações, tendo o privilégio de viver "entre cinemas". Chegava a ver três filmes por dia. Bons ou maus, via tudo.

"É algo que tem que ver com o meu perfil criativo, de artista. O facto de o cinema ter estado tão presente na minha infância." Os próprios almadenses sempre tiveram uma relação próxima com a sétima arte. "Estas salas [da Academia e da Incrível] eram salas com centenas de lugares e estavam sempre cheias. Quando surgia um blockbuster, como os Salteadores da Arca-perdida ou A Guerra das Estrelas, tínhamos de vir uma semana antes comprar bilhetes. Estava sempre tudo esgotado."

Ainda na rua vemos uma das igrejas mais antigas de Almada, a Ermida de São Sebastião. Uma ermida que, antes da sua reabilitação, servia como taberna, mesmo em ruínas – o edifício sofreu danos com o terramoto de 1755, tendo sido abandonada no início do séc. XX – e com o cemitério nas traseiras a descoberto. Depois de visitar a papelaria da rua que tinha os melhores cromos da cidade, Nuno entrava na taberna com o pai que lhe dizia "já viste, isto é uma igreja, transformada em taberna, e estamos aqui a olhar para o tetravô de alguém", uma visão que o aterrava em criança.

"a palavra ‘almadense’ confundia-se com a palavra sócio. Todos os almadenses eram sócios de alguma coisa"

Não deixamos a Capitão Leitão sem falarmos de Almada Velha, da Almada seiscentista, onde segundo reza a história se congeminou parte da revolta contra os espanhóis que ditou a independência de Portugal, em 1640.

Já no fim desta visita guiada que, na verdade, foi o seu princípio, passamos pela Rua Cândido dos Reis, onde Nuno Saraiva nos dá mais apontamentos históricos, lembrando o destino trágico do Almirante que se suicidou ao engano, na manhã de 5 de outubro, a pensar que a revolução republicana tinha falhado. "Só que em Almada, uma cidade que esteve sempre intrigada face ao poder, a República é proclamada logo no dia 4 de outubro, onde a bandeira verde e vermelha é hasteada na velhinha Câmara Municipal [Largo Luís de Camões] ".

Por fim, paramos em frente à Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Neste local, o ilustrador fala-nos sobre a lenda que o fascinava quando era miúdo, quando a imagem da Nossa Senhora foi levada até às margens do Tejo, depois do terramoto de 1755, fazendo com que as águas do rio, que ameaçavam invadir Cacilhas, recuassem.

Tal como a Nossa Senhora, Nuno Saraiva virou-se para o Tejo, não para repelir as águas, mas para avançar para novos caminhos, "sempre com Almada no coração".