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Percursos de autor - Teresa Gafeira

Teresa Gafeira

Marcámos encontro com a atriz, que aceitou interpretar o papel de uma vida que se confunde com o nascimento da Companhia e do Festival de Teatro de Almada, numa viagem pelas memórias de uma cidade bem diferente daquela que conhecemos hoje.

Texto de Paulo Teixeira
Fotografias de Anabela Luís

Teresa Gafeira desempenha atualmente vários “papéis”. Além de atriz e encenadora, é ainda membro da direção da Companhia de Teatro de Almada.

Profissional desde 1977 (Teatro da Trindade), iniciou o percurso nas artes cénicas em 1972, quando trocou a arquitetura pelo teatro, estreando-se na peça “Vida de D. Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança”, de António José da Silva, uma encenação do Grupo de Teatro de Campolide, que ajudou a fundar. Seguiu depois Joaquim Benite na travessia do Tejo e, com o enraizamento do Grupo no concelho, acompanhou a mudança de nome para “Companhia de Teatro de Almada”.

Os papéis que se seguiram vieram impulsionar a carreira e a crítica afirmou-a como atriz de primeiro plano, como é exemplo a participação na peça “Mozart e Salieri”, de Pushkin, em que a sua interpretação das cartas de Mozart tem destaque muito positivo. Em 1993, recebe o Prémio da Crítica pela criação de “Dias Felizes”, de Samuel Beckett e no ano seguinte é distinguida pelo Município de Almada com a medalha de ouro de mérito cultural. A interpretação de Pelagea Vlassova na peça “A mãe”, por exemplo, não deixou indiferente a critica internacional, tendo sido considerada “uma das mais impressionantes atrizes portuguesas” pelo jornal francês L’Humanité.

Na maioria das atuações, trabalhou sob direção de Joaquim Benite, mas outros encenadores como Rogério de Carvalho, Monique Rutler, Jorge Listopad e Alain Olivier, fazem parte da sua carreira. Como encenadora, estreou-se a dirigir "Sopa de Pedras", uma peça baseada em textos de fantoches e dirigiu os elencos de inúmeros espetáculos, na sua maioria dedicados ao público infantil.

“Já não me lembro há quantos anos foi. Esqueço tudo…” A expressão ia pautando a conversa, à medida que viajávamos no tempo, por uma Almada de outrora, em tudo diferente daquilo que conhecemos hoje. Mas, para quem diz tudo esquecer, Teresa foi a guia perfeita, pintando, palavra a palavra, cenários antigos que iam ganhando vida.

“Em 1978, com a descentralização teatral, Almada foi o concelho que escolhemos para vir fazer teatro. Agora há imensa cultura por todo o lado, mas na altura não havia. Almada não tinha nada a ver com o que é hoje, não tinha esta dimensão, nem pouco mais ou menos. Ainda me lembro do primeiro prédio da avenida. Era sobretudo uma cidade de enorme concentração operária, com muitos milhares de trabalhadores. Tinha várias indústrias, sendo a indústria naval a principal, como a Lisnave, a H. Parry & Son, a Companhia Portuguesa de Pesca, o Arsenal do Alfeite, mas também muita indústria têxtil, com empresas com alguma dimensão.”

Numa época de grandes mudanças políticas e ideológicas, as manifestações culturais e a liberdade de expressão ganham um novo fôlego e os “soldados da cultura” dão início a todo um novo processo de dinamização cultural. Teresa Gafeira acredita que a sua companhia fez a escolha acertada ao apostar num trabalho continuado de desenvolvimento cultural, considerando que Almada era “o local ideal, porque toda esta gente não estava familiarizada com o teatro e com a cultura de um modo geral. Estes operários, na sua maioria, não eram nascidos em Almada. Era uma população que vinha de outras terras, a maior parte do Alentejo, mas não só. Eram pessoas que estavam desenraizadas, fora do seu meio cultural e este trabalho que viemos fazer para Almada, veio apoiar a sua integração na cidade”.

E é na antiga Lisnave que começamos esta viagem no tempo e nas memórias. “É o principio, foram muitos meses passados dentro dessas instalações. É o símbolo da maior concentração de pessoas para quem viemos trabalhar. E não era uma situação de estar à espera que as pessoas fossem ali ver os espetáculos. Era um trabalho que se fazia em ligação com a Comissão de Trabalhadores, com o sindicato, com os delegados sindicais. Almocei muitos meses nos refeitórios da Lisnave, passei lá dias inteiros.”

Continuando a jornada, “podíamos passar por todas as escolas primárias de Almada”, mas a próxima paragem que Teresa trouxe à memória foi o primeiro teatro municipal da cidade, o atual Teatro-Estúdio António Assunção. Conta que viu os trabalhadores da Câmara construir aquele espaço em poucos meses. “Tudo o que está ali [antes das últimas obras] foi construído palmo a palmo pelas pessoas que estavam ao nosso lado e por nós. Era um barracão, onde se faziam algumas exposições. A certa altura, ficámos na rua e a câmara cedeu-nos aquele espaço. Às 8 da manhã lá estava o Sr. António, que era chefe das oficinas da câmara. Reunia com ele para vermos as obras do dia e depois partia em digressão para fazer espetáculos. Voltava às seis da tarde para fazer ensaios no meio das obras. Tínhamos perdido o subsídio nesse ano, exatamente por termos ficado sem instalações e tínhamos que trabalhar que nem uns cães, fazendo dois e três espetáculos por dia, voltando à noite para ensaiar a "Dona Rosinha, a Solteira", peça que inaugurou aquele teatro.

”Viajando de memória em memória, chegamos aos locais onde, em 1984, nasceu o Festival de Almada. No Beco dos Tanoeiros, realizou-se a primeira “Festa do Teatro”, com a apresentação de espetáculos de grupos amadores do concelho dirigidos por elementos da Companhia de Teatro de Almada. O impacto desta primeira edição fez com que nos anos seguintes, durante a primeira quinzena de julho, o centro histórico da cidade se transformasse num verdadeiro palco ao ar livre - primeiro no Pátio Prior do Crato, e depois no Largo da Boca do Vento e na Casa da Cerca. Na edição seguinte, o Festival contou já com a participação de companhias como o Teatro Nacional D. Maria II, o Teatro Experimental de Cascais, o CENDREV, a Seiva Trupe e A Barraca, para além da própria Companhia de Teatro de Almada. “Nessa altura, a Casa da Cerca não era o que é hoje. No espaço de entrada, onde hoje se estacionam os carros, era montada uma bancada e fazia-se aí o Festival. Mas não por muito tempo, porque rapidamente houve um aumento de público e tínhamos que procurar outro espaço, porque aquela bancada não chegava. Então descobrimos a Escola D. António da Costa.

” Na década de 90 foi criado o Palco Grande, montado na Escola D. António da Costa, um espaço que passou a constituir-se como o centro desta festa e onde são montadas as exposições de homenagem a personalidades do teatro português, bem como um palco para concertos de música com entrada livre e uma esplanada para restauração, onde se realizam encontros diários entre o público e os criadores que visitam Almada.

“A Escola D. António da Costa é mais um caso de relação extraordinária entre as pessoas e a companhia. A então diretora, a Dra. Cândida, pôs-nos a escola inteiramente à disposição. É muito difícil encontrar na cidade um espaço como este porque a escola tem tudo, desde casas de banho, a espaços que servem como camarins, a uma cozinha industrial. Espaços e equipamentos que permitem tornar isto num local de festa.

” Chegamos agora à última paragem desta viagem - o Teatro Municipal Joaquim Benite, também conhecido como “Teatro Azul” e que desde julho de 2006 acolhe a Companhia de Teatro de Almada. O edifício foi projetado no sentido de significar o existente, dando forma à cidade, segundo escreve Manuel Graça Dias, arquiteto que o desenhou, juntamente com Egas José Vieira. “Nós sugerimos e foi aceite. O Manuel Graça Dias foi meu colega, estudei com ele. Andei 15 anos a tentar meter projetos para a construção do teatro e ele fez vários estudos prévios, tudo por favor, nunca levou um tostão para nada. Portanto era justo que ficasse com o projeto e, além disso, era um arquiteto de mérito reconhecido.”

Com a sua inauguração, a cidade de Almada passa a dispor de uma sala com todas as condições para acolher as melhores companhias e os mais prestigiados criadores do Mundo. “Este teatro também me diz muito. É resultado de um trabalho continuado e, numa conjugação entre a então presidente da câmara e o ministro da cultura, chegou-se a acordo para a construção deste teatro. Nada surge do nada e para ter este teatro foram vinte anos de luta.”

De Almada, confessa que todos os locais das suas memórias estão ligados ao trabalho. Na sua infância, as memórias são das “Janelas Verdes”, em Lisboa, de onde conseguia espreitar Almada, talvez um presságio do cenário que a vida lhe reservava.