Eu sou a minha própria mulher - 40º Festival de Almada
"Quem é ela?”, parece ser a pergunta que o autor faz ao longo desta peça. Fala-se de Charlotte Von Mahlsdorf e conta-se a sua história, com as várias personagens que a acompanham durante o regime nazi, o regime comunista e a reunificação alemã. Mas será essa a verdadeira pergunta? Será que este texto é sobre essa personagem, ou sobre a ideia que construímos dela? E, se assim for, de quem é essa ideia, a não ser do próprio autor? E qual é o ponto de vista que tem sobre esta pessoa enigmática, que escolheu retratar? A protagonista é, e não é, Charlotte Von Mahlsdorf, uma persona criada por um escritor. E, por isso, o eixo dramatúrgico deve centrar-se no próprio autor. Um autor que é, ao mesmo tempo, uma personagem desta peça, carregada de pontos de vista e, sobretudo, toldada pelo amor que tem pelo “herói” que criou, mais do que pela personagem real.
A ficção supera a realidade, e a verdadeira Charlotte nunca se viu a si própria em cena. Pelo menos, nunca viu a versão que Doug Wright de si criou — porque, entretanto, morreu. Por muito mórbida que esta circunstância seja, ela faz com que Eu sou a minha própria mulher se constitua como um acontecimento teatral raro, cheio de armadilhas e de zonas performáticas que nos levam a questionar o que é a realidade e, ao mesmo tempo, o que é o teatro. Charlotte representa que é Charlotte, ou será mesmo Charlotte? As histórias que conta são reais porque aconteceram, ou porque quem as ouve acredita nelas? No ano passado, o público do Festival votou neste espetáculo para que regressasse em 2023 como Espetáculo de Honra.
Espetáculo e Honra do 40.º Festival de Almada. De Doug Wright com encenação de Carlos Avilez. Por Teatro Experimental de Cascais.